Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo
O telefone não dava linha. Era sempre assim: as
linhas para o centro da cidade nunca completavam a chamada. Depois de meia hora
conseguiu falar com a secretária do seu chefe no Banco do Brasil que lhe disse
de uma reunião de urgência, o que lhe deu um pavor especial, como se fosse para
um tribunal. Os 'lotações' passavam lotados, zuniam sem parar até que um deles
fez meia trava e falou: "Só agachadinho". No terno marrom da Ducal
ele foi sentado no chão e se consolou pensando nos jogadores que posavam nessa
postura, Ademir agachado, Danilo agachado, ele no micro-ônibus com as pernas de
uma senhora de meias ortopédicas junto a seu rosto. Recebeu o troco do
ramalhete de notas que o motorista tinha entre os dedos e desceu na Avenida Rio
Branco, em 1951, quando tudo era precário, com ônibus amontoados no trânsito
sem rumo, milhares de transeuntes em sua pressa pobre, o que lhe aumentava o
medo e a solidão porque (pensava sempre) dali a 50 anos todos estariam mortos.
E seu peito esfriou mais ainda quando atravessou a
repartição, entre as máquinas de escrever batucando, como se o acusassem de
fracassado, ele que marcava passo enquanto incompetentes subiam na vida.
Por que por que a ponta de sarcasmo no tom do
contínuo que o chamou de 'meu chapa'? Por que a ironia (ele achou) no sorriso
gélido da secretária?
O novo chefe à sua frente exibia uma desdenhosa
superioridade, de modo a camuflar o fato de ser um indicado político boçal. Ele
falava lentamente, como cabe a um diretor dirigir-se a um subordinado em
cadeira mais baixa e seus olhos luziam cruéis quando lhe comunicou que seu
relatório estava muito fraco, entregando-lhe o maço de papéis com desprezo.
Trêmulo, ele perguntou por que o relatório era ruim e o chefe respondeu com um
sorriso de expert para ocultar sua ignorância: "Descobre você mesmo"
e indicou-lhe a porta.
Seu amigo mais próximo era o porteiro que o 'gozou'
quando ele saiu do prédio: "Seu Flamengo, hein? Vender o Zizinho pro
Bangu?" Dos bondes pendiam cachos de passageiros nos estribos como trens
da Índia. Agarrou-se em um deles, grudado entre um negão fuzileiro naval de
paletó vermelho, irritado com o recém-chegado e o condutor que se pendurava no
cacho humano para pegar as notinhas de cruzeiro e ele, protegendo o maço do
relatório que o vento ameaçava desfolhar, se perguntava com amargor por que o
relatório era ruim, mas falou está falado, o chefe manda, e pensava também no
catupiry que esquecera de comprar, já imaginando a cara de sua mulher dando um
muxoxo que significava sua desvalia.
Não que fossem infelizes no casamento longo; sem
ódio ou desamor, havia entre eles uma estranheza, um temor quando se amavam
raramente no escuro da cama, quase um incesto entre dois irmãos íntimos, o que
lhes esfriava o corpo, pois não sabiam como transformar o tédio incestuoso num
delicioso pecado, numa perversão excitante.
Não que estivessem velhos e feios; eles eram
exatamente o que a vida lhes previa havia anos - ela, com sua gostosura
suburbana, perdera a bela maciez juvenil que clamava por fecundações que nunca
vieram, sem falar no aborto espontâneo que lhe extinguiu o desejo maternal. O
que antes era vigor do fundo de suas glândulas virara um peso de órgãos
infelizes, ovários inchados, flores brancas, escassez de menstruo, varizes que
lhe azulavam as pernas muito brancas e indesejados pelinhos negros que se
espalhavam pelas coxas como uma hera, o que o abatia quando despia o terno da
Ducal e se deitava sobre seu corpo. Ambos eram fiéis e quase não brigavam em
silenciosa paciência, numa familiaridade insossa e, de noite, nas salas e
quartos, pareciam personagens de uma casa que era na realidade habitada pelos
móveis. Entre poltronas de veludo, quadros de pretos velhos e pombas, entre
cortinas e abajures eles viviam combinando seus gestos com a mudez desbotada
dos ambientes.
E o que mais lhe doía ali no estribo do bonde era
saber que não seria despedido jamais, apenas eternamente humilhado, pois tinha
estabilidade no emprego público; se bem que, no fundo do seu corpo havia o
desejo de sê-lo - por quê? Sentia vontade de ser expulso não só do banco, mas
de tudo, ejetado, projetado como uma bala para bem longe, para um remoto lugar
onde não houvesse nada a não ser uma imensa planície verde como um infinito
campo de golfe - por quê?
Pulou do bonde andando e chegou em casa. No
elevador, já sentia a habitual mão dura e fria no peito. Quando entrou no
apartamento evitou passar em frente do espelho, com um vago receio de não ser
refletido. A casa estava vazia - somente ele e os móveis: o sofá de folhagens
estampadas, a poltrona de veludo que parecia se mover em sua direção, a jarra
de flores de plástico prestes a cair da cristaleira e o rádio tocando baixinho
um bolero. Desligou tudo e ouviu o silencio com um agudo ruído ao fundo, como uma
nota de violino sem fim.
A mão fria apertava mais seu peito e empurrou-o até
a cozinha. A empregada pretinha chamava-se Hermínia (por que o nome grego?)
Mandou-a comprar bananas. Ela saiu. Ele bebeu um
copo d'água com goles sôfregos. Em seguida foi até a área de serviço, tirou os
sapatos, arrumou-os juntinhos com o pé direito um pouco à frente, como sempre
fazia para dar sorte. Em seguida, jogou-se da janela como um banhista que
mergulhasse de um trampolim.
As estatísticas registram o hábito estranho de que
quase todos os suicidas tiram os sapatos antes de pular. Por quê? Talvez uma
esperança de leveza, uma hipótese de voo, o quê? Um desejo de elegância para
evitar sapatos desconjuntados?
Em três segundos, enquanto caía, muitas emoções
viveu na velocidade da luz: um alívio pela coragem, um pavor arrependido, a
ressurreição (sim, muitos se matam para renascer), a esperança de que o chão
não chegue nunca, a curiosidade de conhecer a morte no instante do impacto e a
pergunta 'por quê?' Caído na calçada, pode ter visto um campo verde.
Quando a empregada chegou com as bananas só viu a
cozinha vazia e os sapatos pretos de amarrar, arrumadinhos no canto da área.
Pegou os sapatos para levar ao quarto quando começou a gritaria dos condôminos
lá embaixo.
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